Formas modernas de trabalho forçado. Reflexões a propósito da Lei portuguesa 23/2016

Carlos Manuel da Fonseca Graça

Jurista. Inspetor do Trabalho.

Longe vai o tempo em que as empresas integravam no seu seio todas as valências do processo produtivo, no âmbito da atividade a que se dedicavam. Nos últimos trinta a quarenta anos, fomos assistindo de forma progressiva ao desmembramento da estrutura empresarial tradicional, para passarmos a ter empresas que pouco mais englobam no seu seio do que os órgãos de gestão e o chamado pessoal de enquadramento. Tudo o resto foi jogado para fora. Quando se necessita vai-se ao mercado contratar empresas especializadas, que prestam os serviços necessários aos contratantes.

Para a maioria dos defensores deste sistema de outsourcing, trata-se de uma ferramenta eficaz de gestão, flexibilidade e otimização de recursos e de todo o processo produtivo, que para além de permitir ganhos de eficiência, permite também a incorporação de tecnologia por parte das empresas prestadoras de serviços, que de outra forma obrigaria a investimentos significativos por parte dos contratantes sem que pudessem rentabilizar cabalmente esses investimentos.

Estas redes de outsourcing não se ficaram tão só pelas prestações de serviços, estenderam também o seu leque de atuação à própria mão-de-obra, permitindo às empresas contratantes o acesso a mão-de-obra, supostamente “especializada”, sempre que necessário, sem necessidade de engrossarem os seus quadros de pessoal.

Temos então o surgimento das empresas de trabalho temporário, que contratam trabalhadores não para si, mas para serem cedidos a terceiros, pelo tempo estritamente necessário. Como variante a estas e concorrentes desleais das mesmas, porque mais não são do que empresas de cedência de mão-de-obra encapotadas, temos as designadas prestadoras de serviços de mão-de-obra. Designação assumida na gíria interna mas ocultada para o exterior.

Todo este sistema tem levado a que, progressivamente, se fosse perdendo, ao nível da mão-de-obra, a escola que eram as próprias empresas. Por outro lado, ganhou-se precariedade nas relações laborais e a acentuação da exploração dos trabalhadores, quando não se chega mesmo a situações de pura escravatura, uma “escravatura moderna”.

Com o agudizar da crise económica, do desemprego e da política de baixos salários, somou-se a tudo isto uma nova vaga de emigração em massa, predominantemente dos nossos melhores trabalhadores especializados e dos jovens quadros licenciados que, não conseguindo emprego em Portugal, tiveram que procurar outras paragens. Por esta via, na última década, Portugal já perdeu duas gerações de mão-de-obra altamente qualificada.

Como contrapartida passámos a ser, crescentemente, um porto de destino de fluxos de mão-de-obra barata. Numa primeira fase, oriundos dos países mais pobres da própria União Europeia (Roménia e Bulgária) a par dos Países do Leste Europeu (Ucrânia, Moldávia), evoluindo mais recentemente para trabalhadores vindos de Países Asiáticos (Tailandeses) e Indostânicos (Nepaleses, Paquistaneses, Indianos e Bangladeche).

Estes movimentos migratórios para Portugal, que acabam por ser essenciais para fazer face à crescente falta de mão-de-obra, é parcialmente resultante da partida nos nossos trabalhadores para outras paragens, principalmente no sector primário, em culturas de mão-de-obra intensiva em franca expansão, em toda a zona de influência do regadio do Alqueva e ao longa da Costa Vicentina. Por norma, estes trabalhadores são oriundos das regiões mais vulneráveis dos países referidos, onde as condições de vida, sendo bastante precárias, facilitam o seu recrutamento, tornando-os presa fácil para as redes de exploração e tráfico de mão-de-obra.

Estes fluxos migratórios são predominantemente incrementados e alimentados por autênticas redes mafiosas e de exploração de mão-de-obra, na maioria das vezes encapotadas pela criação de “Empresas na hora”. Tituladas por falsos empresários, por regra oriundos dos próprios países, estes mais não são do que simples trabalhadores forçados a aceitar ser empresários, a troco de mais alguns tostões e outras vezes nem isso, funcionando como meros testas-de-ferro. Por vezes, estes “testas-de-ferro” chegam a coabitar com os restantes trabalhadores, em contentores ou em barracões nas próprias explorações ou em garagens, casões, ex-espaços comerciais devolutos, etc., arrendados nas áreas urbanas, a nacionais sem escrúpulos, sem contratos de arrendamento, que obtêm proventos aivados de ilicitude e contribuem, também estes, para alimentar o sistema e toda uma economia paralela que grassa em Portugal.

Estas empresas são simplesmente “empresas de oportunidade”, com sede social declarada de uma qualquer rua e número de polícia por onde os seus mentores passaram e que anotaram, destinadas a funcionarem tão só até serem interceptadas pelas autoridades, momento em que dão por cumprida a sua missão. Nesse momento, acabam por extinguir-se ou, pura e simplesmente, desaparecem da circulação, para no dia seguinte ser formada uma outra empresa com outro trabalhador que passou a ser empresário, sob a égide da mesma rede.

Por detrás de toda esta cadeia estão os verdadeiros mafiosos que nunca dão a cara e aos quais mesmo as polícias de investigação criminal (porque é de crime que estamos a falar) têm muita dificuldade em chegar, e de reunir provas contundentes que permitam apresenta-los perante a justiça. É assim, também, porque muitas vezes os verdadeiros responsáveis nem sequer estão em Portugal, ou só vêm ao nosso país esporadicamente, ainda que tenham cá quem controle o negócio.

Durante o seu período de atividade, estas empresas exploram até ao limite os trabalhadores que recrutam nos próprios países de origem. Chegam a cobrar-lhes à cabeça o equivalente de 10 a 15 mil euros para os trazerem para Portugal, sob promessas que nunca serão cumpridas. Não os declaram à Administração do Trabalho e da Segurança Social, o que significa que perante situações de acidentes de trabalho ficam completamente desprotegidos face à inexistência de seguro de acidentes de trabalho. Não são realizados exames de saúde, pondo muitas vezes em causa, para além da preservação da saúde e integridade física dos trabalhadores a própria saúde pública. Mantêm frequentemente os trabalhadores a viver em condições sub-humanas, faturam os serviços prestados aos contratantes e não pagam os correspondentes impostos, nomeadamente o IVA e as contribuições para a Segurança Social, entre muitas outras transgressões às regras mínimas de enquadramento laboral.

Mas os benificiários de toda esta exploração de trabalhadores não se ficam por aqui. Não são poucas as vezes em que as empresas contratantes, maioritariamente portuguesas de capital estrangeiro, remuneram as pseudo-prestações de serviços por valores que nem cobrem os custos inerentes à mão-de-obra. Pseudo-prestações de serviços porque, na maioria das vezes, estamos perante verdadeiras cedências ilegais de mão-de-obra. Tratando-se de uma prática deplorável, em que todos lucram exceto os trabalhadores que são as vítimas de todo o sistema, ainda assim estes acabam também por alimentar este tipo de tráfico, pois que mesmo sendo explorados e mal tratados, quando não mesmo escravizados, acabam por conseguir proveitos do seu trabalho que nunca conseguiriam obter no seu país de origem.

Estamos a falar de países e regiões em que o diferencial entre o que ganham nas regiões de onde são oriundos, comparativamente com o nosso ordenado mínimo nacional, chega a atingir a proporção de um para dez. Embora acabando por nunca auferir o ordenado mínimo nacional, na maioria das vezes, ainda conseguem proveitos equivalentes a duas três vezes o que ganhariam no seu país de origem.

Todo este sistema tem igualmente vindo a ser alimentado, na última década, por uma progressiva liberalização da legislação laboral permissiva e por essa via incrementadora deste estado de coisas, em nome da necessidade da flexibilização do mercado do trabalho, em prol da suposta modernização das empresas e da sua competitividade face às novas exigências dos mercados e de uma alegada necessidade de ganhos de competitividade internacional.

Como corolário desta tendência neoliberal de conferir um caráter absolutamente civilista à legislação laboral, como se as partes – empregadores e trabalhadores – estivessem ao mesmo nível “no prato da balança”, ignorando em absoluto a subordinação do trabalhador inerente ao próprio contrato de trabalho, desembocamos no Código de Trabalho de 2009, com todas as alterações que lhe foram sendo introduzidas até finais de 2015, acompanhada pelo completo esvaziamento da contratação coletiva que ocorreu em Portugal neste período.

Infelizmente o legislador, por regra, não consegue acompanhar os fenómenos de desregulação que surgem na sociedade. De facto, leva demasiado tempo a reagir, por vezes inclusive por motivações políticas, mas mesmo quando reage, o tempo que medeia até a concretização do processo legislativo faz com que, quando as alterações legislativas entram em vigor, muitas das vezes encontram-se já elas próprias desfasadas, porque entretanto esses mesmos fenómenos já evoluíram para patamares diferentes. Na realidade, este tipo de práticas de que vimos falando, evoluem continuamente, sendo-lhe progressivamente introduzidas novas variantes, tendentes a dificultar a atuação das autoridades.Inicialmente, os engajadores invariavelmente constituíam as empresas em Portugal, aproveitando-se das facilidades que entretanto haviam sido introduzidas no nosso sistema jurídico (nomeadamente por via do programa “Simplex”, que tinha como objetivo desburocratizar os procedimentos dos serviços do Estado, e que criou, entre outros, o procedimento da “Empresa na hora”). Além disso, declaravam os trabalhadores à Segurança Social, para dar uma imagem de regularidade, ainda que não chegassem a efetuar quaisquer descontos e anulassem as comunicações passados poucos dias, do mesmo modo que contratualizavam seguros de acidentes de trabalho que nunca chegavam a pagar e agendavam a realização de exames médicos para os trabalhadores que estes nunca chegavam a fazer. No entanto, presentemente, já nem isso fazem. E não o fazem porque rapidamente chegaram à conclusão que não valia a pena estarem a perder tempo, uma vez que os próprios contratantes, na sua maioria, não lhes exigiam qualquer demonstração de que a situação dos trabalhadores estava regular.

Para além disso, este sistema foi também alimentado pela percepção, por parte dos engajadores, de que a impunidade era a prática corrente, face à incapacidade de controlo da situação por parte das autoridades, nomeadamente em função dos escassos meios de que dispunham. Mais ainda, mesmo quando interceptados pelas autoridades públicas, os engajadores perceberam que lhes era fácil desaparecem de cena, sem quaisquer consequências práticas, constituindo em seguida uma outra “empresa na hora”.

Na sequência de ações inspetivas, levantados os autos, feitos os apuramentos para a Segurança Social, quando se objetiva fazer a notificação do processo, já não há a quem fazê-lo. Se porventura as autoridades inspetivas conseguem realizar a notificação inicial, invariavelmente a notificação da decisão final já não se chega a concretizar, por desconhecimento do paradeiro do infrator, acabando por regra os processos, mais tarde ou mais cedo, por serem arquivados, ficando os infratores impunes, como se nada tivesse acontecido. Entretanto, no período que medeia o início do processo e a notificação final, é frequente a “empresa na hora” já ter sido extinta, podendo inclusivamente acontecer que o seu único sócio e representante legal continue a circular livremente e inclusive, se necessário for, constituia uma nova empresa.

Como se isso não bastasse, são já hoje conhecidas práticas bem mais elaboradas, que tornam praticamente inviável a atuação das autoridades perante estas redes, salvo quando em paralelo ocorrem investigações no âmbito criminal e estes acabam por ser detidos.

Sabendo que a competência de atuação das autoridades nacionais são os limites das nossas fronteiras, os engajadores passaram muitas vezes a constituir as empresas em países terceiros, fazendo o destacamento dos trabalhadores para Portugal. Noutros casos, estes titularam-se como empresas de trabalho temporário constituídas também em países terceiros, colocando em Portugal os trabalhadores em utilizadores portugueses, sem que, em qualquer das situações, tenham qualquer interlocutor em Portugal, inviabilizando totalmente a atuação das entidades inspetivas sobre as mesmas.

Este é o estado atual das coisas, perante o qual, finalmente, o legislador nacional despertou. Fê-lo também porque, politicamente, estão hoje reunidas as condições que o permitem, com uma nova maioria constituída há cerca de um ano em Portugal (constituída por um Governo do Partido Socialista, suportado no Parlamento pelo Partido Socialista, Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português e Partido Ecologista Os Verdes). Com efeito, já na legislatura anterior tinham existido iniciativas legislativas no sentido de reverter a situação, mas a maioria então no poder (constituída por uma coligação à Direita, formada por os partidos, PSD/CDS) acabou por inviabilizar a sua aprovação.

Da Alteração Legislativa: a Lei 23/2016, de 23 de Agosto

O objetivo primordial da Lei em apreço, embora o preâmbulo não o refira expressamente, é a de, no âmbito das relações jurídicas do trabalho, trazer à colação, em termos de responsabilidade contraordenacional e pelo pagamento da coima, toda a cadeia de contratação interveniente nas relações que advêm do trabalho temporário e das prestações de Serviço, quando estas, no todo ou em parte são realizadas nas instalações do contratante ou sob a responsabilidade do mesmo.

Neste tipo de responsabilização, para além dos intervenientes diretos, estende-se a mesma responsabilidade, tratando-se de pessoas coletivas, aos respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como às sociedades que com o contratante, dono da obra, empresa ou exploração agrícola se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo. Foi esta a grande alteração realizada pela lei aprovada em julho do presente ano.

Trata-se de uma iniciativa legislativa cujos princípios subjacentes são de primordial relevância. Não estando em causa de modo nenhum a bondade da intenção e muito menos o espírito que presidiu à sua aprovação, contudo, visar, sem mais, todos aqueles que, de forma direta e indireta, acabam por tirar benefícios da exploração dos trabalhadores, afigura-se-me ter ficado curta e algo exposta a controvérsias jurídicas.

Desde logo, surgindo desprovida da relação das causas / efeitos / proventos relativamente a todos quantos são beneficiários da prática que se objetiva combater, advém a suscetibilidade de contra a mesma ser invocada a violação do princípio constitucional de insusceptibilidade de transmissão da responsabilidade contraordenacional. Digo-o com a perfeita consciência e reconhecimento de que, em processos legislativos deste tipo, em que subjacente aos mesmos está a necessidade de se criarem consensos políticos e a necessidade prévia da conciliação dos diversos interesses em jogo, torna-se bem mais difícil a coesão do processo legislativo e a sua correta abrangência.

A exploração dos trabalhadores, no plano jurídico-laboral, ao nível do direito substantivo, deve ter em conta, para além das questões que se prendem com políticas de baixos salários e a suscetibilidade de jornadas de trabalho abusivas, o facto de, em regra, ter também associada a falta de condições de higiene e segurança, mesmo nos aspetos mais elementares, bem como a realidade do trabalho não declarado, a dissimulação contratual, a cedência ilegal de mão-de-obra e a precariedade abusiva. No plano das normas de direito adjetivo, esta exploração tira partido da complexidade e morosidade da tramitação processual, razão pela qual o legislador deve também acautelar estas dimensões.

Seria desejável que alterações legislativas como a agora materializada, visassem de forma integrada pelo menos estes aspetos numa perspetiva conjunta, na perspetiva do combate à exploração dos trabalhadores. Para além da necessidade de instrumentos legais adequados às matérias supra referidas, uma intervenção legislativa nesta área implica a necessidade praticamente permanente de articulação entre as diversas autoridades, promovendo iniciativas conjuntas que vão desde a informação / sensibilização de empresas, trabalhadores e população em geral a intervenções inspetivas conjuntas, justamente porque o fenómeno envolve questões que não se esgotam na esfera jurídico-laboral nem no âmbito de atuação de uma só qualquer entidade.

Entre as diversas entidades cuja ação deve ser articulada, encontram-se pelo menos cinco. Por um lado, a Autoridade para as Condições do trabalho (ACT), que deve intervir em tudo o que tem a ver com o mundo laboral, Higiene e Segurança no Trabalho e todos os aspetos sócio laborais e da Segurança Social. Por outro, a Inspeção Tributária, dado que onde há trabalho não declarado ou subdeclarado há economia paralela e consequentemente há fuga de impostos. Em terceiro lugar, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), uma vez que a exploração humana e o trabalho não declarado estão intimamente ligados ao trabalho de estrangeiros. Em quarto lugar, a Administração de Saúde, tendo em conta que quer as questões de habitabilidade em espaço urbano ou mesmo nas instalações dos contratantes têm a ver com a saúde pública. Em quinto lugar, as Forças de Segurança (no caso português, a Guarda Nacional Republicana ou a Polícia de Segurança Pública, e outras), cuja participação nestes processos é indispensável pela necessidade da salvaguarda da segurança das entidades que intervêm no processo, do conhecimento do terreno que possuem e manutenção da ordem pública e mesmo enquanto órgãos de polícia criminal.

Um bom exemplo desta articulação está presentemente em curso no âmbito do Contrato Local de Segurança do Concelho de Serpa, promovido pelo Ministério da Administração Interna, com a colaboração da Câmara Municipal, cujos primeiros resultados começam já a ser visíveis.

Para que toda esta articulação funcione em pleno, o domínio da informação é crucial, tornando-se cada vez mais premente a possibilidade de cruzamento de dados e consequente disponibilização entre as entidades, do acesso às correspondentes bases de dados.

Por último, ainda no âmbito laboral, é de extrema importância a agilização dos procedimentos contraordenacionais e é imprescindível dotar a Autoridade para as condições de Trabalho (a autoridade responsável pela inspeção das condições laborais em Portugal) dos necessários instrumentos legais, dos meios humanos e dos equipamentos indispensáveis para esta atuação.

A necessidade de reversão do atual estado do direito do trabalho, nomeadamente do Código do Trabalho que acentuou a precarização das relações laborais, seria desejável que a intervenção legislativa pudesse ser feita em simultâneo, em aspetos cruciais como os referidos anteriormente, até como forma de se lhe manter a coerência dos princípios que a deve nortear. Feito de forma parcelar como foi o caso da recentemente publicada Lei 28/2016, correm-se sérios riscos de não se conseguir manter essa coerência, nem os fins que verdadeiramente se objetivam, não só pela natural evolução dos momentos políticos em que as alterações vão sendo introduzidas, como da evolução dos próprios fenómenos que se pretendem regular. É disso um bom exemplo a exploração laboral e o trabalho não declarado, que são tudo menos estáticos, como não o são também as formas como se apresentam.

Não acontecendo assim ou não sendo possível, a previsibilidade de se ir construindo um conjunto de normas sem um fio condutor comum, aumenta exponencialmente. Se tivermos presente que a atual Lei 28/2016, que em súmula, versa tão só sobre a responsabilidade solidária e subsidiária dos diversos agentes intervenientes, quando a prestação de serviço se desenvolve no todo ou em parte nas instalações do contratante ou sob a responsabilidade do mesmo e nas situações de trabalho temporário, é manifesto que ficaram de fora aspetos fulcrais no combate a estas problemáticas e que era importante ter acautelado.

Para podermos materializar coativamente a responsabilidade solidária ou subsidiaria do sujeito ou sujeitos que a lei titula como tal, porque verdadeiramente estes não são arguidos no processo, é preciso que exista previamente condenação com trânsito em julgado do infrator, ou seja daquele que a lei sanciona enquanto tal. Enquanto não existir condenação com trânsito em julgado, coativamente nunca se conseguirá chegar aos responsáveis solidários e subsidiários. Realço coativamente, porque voluntariamente sempre o poderão assumir, nomeadamente pagando voluntariamente as coimas e por essa via pondo fim ao processo. Não devemos ignorar, contudo, que as situações de pagamento voluntário neste tipo de processo são excecionais e ainda o são mais quando falamos de responsáveis solidários.

Sendo a situação mais comum nos processos envolvendo a exploração de trabalhadores, nomeadamente no caso do trabalho não declarado, a incapacidade em levar a bom porto os processos de contraordenação, porque muitas vezes se torna impossível a notificação dos arguidos pelas razões que já aqui foram explanadas, corre-se o sério risco, mesmo após as alterações decorrentes da Lei 28/2016, de ficarmos rigorosamente na mesma situação em que já nos encontrávamos anteriormente à sua entrada em vigor, ou seja, a de termos que continuar a arquivar os processos por impossibilidade de notificar o arguido, nomeadamente da decisão final, ou seja, de os condenar, continuando a grassar a impunidade dos mesmos e pior ainda dos que agora se objetiva abarcar com esta nova Lei.

Para resolver esta situação era imperioso que também se tivesse mexido pelo menos na lei adjetiva. Como? Agilizando os procedimentos contraordenacionais nomeadamente por forma a evitar que o arguido se consiga eximir às notificações no âmbito do processo contraordenacional e consequentemente de ser condenado, como o tem feito até aqui e previsivelmente o irá continuar a fazer, agora com o beneplácito se não mesmo com colaboração, mais do que nunca, daqueles a que a esta Lei veio cometer a responsabilidade solidária e subsidiária, porque rapidamente os seus advogados lhes vão explicar isso mesmo.

Para corrigir esta situação nem tão pouco é necessário andar a inventar o que quer que seja, basta ir buscar os bons exemplos que já existem no ordenamento jurídico Português e que o legislador as queira incorporar na lei que regula as contraordenações laborais.

Aqueles que têm a experiência do terreno, conhecendo como conhecem as dificuldades com que se deparam no dia-a-dia e as vicissitudes que muitas vezes têm que conseguir ultrapassar para contornar os comportamentos, manobras dilatórias e evasivas dos arguidos e dos advogados que os defendem e mesmo as insuficiências da lei, não têm dificuldade em identifica-las e apontar o caminho.

Nesse sentido e objetivando ser consequente com as insuficiências apontadas, deixam-se algumas ideias do que se julga necessário fazer para ultrapassar muito do que se referiu:

Aditamento à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

Proposta da alteração dos artigos 2.º, 5.º, 7.º, 8.º 9.º, 29.º da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, aditando-se o artigo 10.º A:

Artigo 2.º

Competência para o procedimento de contraordenações

1 – (…)

2 – Sempre que se verifique uma situação de prestação de atividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado, ou a situação decorrente do incumprimento da adequação da taxa contributiva à modalidade de contrato de trabalho prevista no artigo 55.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, ou à falta de comunicação de admissão do trabalhador na segurança social, qualquer uma das autoridades administrativas referidas no número anterior é competente, em função da verificação dos factos, para o processo e para o procedimento das contraordenações.

“Objetiva-se por esta via, consolidar um princípio já consagrado na Lei 107/2009, que regula as contraordenações laborais em Portugal, pelo qual deve ser a entidade administrativa que verifica a situação ilícita nas matérias diretamente relacionadas com a exploração dos trabalhadores, que é a competente em razão da matéria e dos procedimentos contraordenações”.

Artigo 5.º

Forma dos atos processuais

1 – (…).

2 – (…).

3 – (…).

4 – (…)

5 – Quando os atos processuais e os documentos referidos nos números anteriores não forem tramitados em suporte informático, podem ser impressos e assinados por chancela.

6 – Sendo casa disso, nomeadamente nos casos em que seja suscitada a autenticidade de qualquer dos atos a que se refere o número anterior, podem a todo o tempo, no decurso do processo, ser os mesmos ratificados por quem tem competência para os praticar.

Artigo 7.º

Notificações

1 – Os atos em matéria de contraordenações laborais que afetem os direitos e interesses legítimos dos seus destinatários só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados.

2 – As notificações conterão sempre o despacho ou a decisão, os seus fundamentos e sendo caso disso os meios de defesa e prazo para reagir contra o ato notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências.

3 – Constitui notificação o recebimento pelo interessado ou a entrega na conta de correio eletrónico de que seja titular de cópia do despacho ou decisão a que assista.

4 – As notificações são dirigidas, sendo conhecido, para o endereço eletrónico dos destinatários, para a sede ou para o domicílio.

5 – As notificações podem ainda ser feitas presencialmente na pessoa dos seus destinatários.

6 – Os interessados que intervenham em quaisquer procedimentos levados a cabo pela autoridade administrativa competente devem comunicar, no prazo de 10 dias, qualquer alteração dos elementos referidos no número 4.

7 – Se do incumprimento do disposto no número anterior resultar a falta de recebimento pelos interessados de notificação, esta considera-se efetuada para todos os efeitos legais, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

8 – Qualquer funcionário da Autoridade para as Condições do Trabalho, no exercício das suas funções, quando devidamente mandatado para o efeito, promove as notificações, por qualquer das vias referidas nos números anteriores.

Artigo 8.º

Notificação por carta registada

1 – Não sendo possível a notificação através da conta de correio eletrónico, as notificações em processo de contraordenação são efetuadas por carta registada, com aviso de receção, sempre que se notifique o arguido do auto de notícia, da participação e da decisão da autoridade administrativa que lhe aplique coima, sanção acessória ou admoestação.

2 – Nas circunstâncias referidas no número anterior as notificações poderão ainda ser feitas presencialmente em conformidade com o que se preceitua no n.º 8 do artigo anterior.

3 – Sempre que o notificando se recusar a receber ou assinar a notificação, o distribuidor do serviço postal, ou o funcionário da ACT certifica a recusa, considerando-se efetuada a notificação, na data em que essa circunstância ocorrer.

3 – A notificação por carta registada com aviso de receção, considera-se efetuada na data em que o aviso for assinado e tem-se por efetuada na própria pessoa do notificando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro presente na sede, ou domicílio, considerando-se neste caso que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.

4 – No caso de o aviso de receção ser devolvido em virtude do destinatário não o ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais e não se comprovar que entretanto o destinatário comunicou a alteração do seu domicílio, a notificação será repetida nos 15 dias seguintes à devolução, por nova carta registada com aviso de receção, presumindo-se a notificação se a carta não tiver sido recebida ou levantada, sem prejuízo de o notificando poder provar justo impedimento ou a impossibilidade de comunicação da mudança de residência no prazo legal.

5 – No caso da recusa de recebimento ou não levantamento da carta, previstos nos números anteriores, a notificação presume-se feita no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil.

Artigo 9.º

Notificação na pendência de processo

1 – As notificações efetuadas na pendência do processo em que não sendo possível a notificação através da conta de correio eletrónico, não sejam as referidas no n.º 1 do artigo anterior são efetuadas por meio de carta simples.

2 – Quando a notificação seja efetuada por carta simples deve ficar expressamente registada no processo a data da respetiva expedição e a morada para a qual foi enviada, considerando-se a notificação efetuada no 3.º dia posterior à data ali indicada, devendo esta cominação constar do ato de notificação.

3 – Sempre que exista o consentimento expresso e informado do arguido ou este se encontre representado por defensor constituído, as notificações podem ainda ser efetuadas por telefax.

4 – Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se consentimento expresso e informado a utilização de telefax pelo arguido como meio de contactar a autoridade administrativa competente.

5 – Quando a notificação for efetuada via correio eletrónico ou por telefax, presume-se que foi feita na data de emissão, servindo de prova, prospectivamente, a cópia do aviso de onde conste a menção de que a mensagem foi enviada com sucesso, bem como a data, hora e número de telefax do recetor ou o extrato da mensagem efetuado pelo funcionário, que será, consoante o caso, incluído no processo.

6 – A presunção referida no número anterior poderá ser ilidida por informação do operador sobre o conteúdo e data da emissão.

7 – Sempre que o arguido se encontre representado por defensor legal as notificações são a este efetuadas.

“Em matéria de notificações dos sujeitos visados no processo, sem prejuízo da salvaguarda do direito de defesa, objetiva-se imprimir maior celeridade e simplicidade na tramitação do processo, ao mesmo tempo que se procura impedir em sede de notificação muitas das práticas dilatórias e impeditivas do prosseguimento do processo e consequentemente da materialização da notificação da decisão final e consequentemente de chegar a todos quantos a lei objetiva responsabilizar pela pratica das ilicitudes e pelo seu pagamento”.

Artigo 29.º

Procedimento

1 – A autoridade administrativa competente, em simultâneo com a acusação a que se refere os artigos 17.º e 18.º, informa o infrator da possibilidade de pagamento da coima, no prazo de cinco dias, com a redução prevista nos termos do artigo seguinte, desde que proceda simultaneamente ao cumprimento da obrigação devida.

2 – A ausência de resposta do infrator, recusa de pagamento no prazo referido no n.º 1 ou o não cumprimento da obrigação devida, determina o imediato prosseguimento do processo de acordo com as regras previstas nos artigos 17.º a 27.º.

“Na mesma senda a da celeridade e simplificação, suprime-se uma forma processual, a do processo especial, sem que todavia se corte a possibilidade de nas mesmas circunstâncias que estavam previstas para o processo especial o arguido poder beneficiar da possibilidade de pagar a coima com redução”.

Artigo 10.º A

Dissimulação

1 – Sem prejuízo do que se preceitua no artigo 12.º do Decreto-lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, quando no exercício das funções que lhes são cometidas, nomeadamente por força do artigo 11.º do mesmo Decreto-Lei, sempre que o interesse das averiguações assim o exijam na procura da verdade material dos factos, é lícito ao inspetor do trabalho, dissimular a sua condição em vista à indagação e recolha de prova, enquanto as circunstâncias das averiguações em curso assim o exigirem.

2 – A prova obtida nos termos do número anterior é reconhecida para efeitos processuais.

“Um dos constrangimentos que se evidencia em determinados tipos de averiguações, nomeadamente no trabalho não declarado e exploração de trabalhadores, existente no ordenamento jurídico português relativamente à ACT, ao invés do que acontece em relação à maioria dos órgãos de inspeção é não se reconhecer expressamente a validade da prova obtida através da dissimulação relativamente à condição de inspetor.

Um tal reconhecimento é fulcral quando estamos a lidar com um tipo de trabalho que é manifestamente escondido como é o caso.

Mais uma vez aqui não se procurando inventar o que já existe, antes objetiva-se dotar a ACT de um instrumento de grande relevância no controlo destas matérias”.

Só a experiência da aplicação prática da Lei 28/2016, e a jurisprudência que da sua aplicação irá seguramente emergir poderá ou não infirmar tudo quanto se referiu.