Editorial Revista de Derecho Social-Latinoamérica Nº 2

A Revista de Direito Social Latinoamerica chega ao número 2 de sua segunda fase em uma especiosa quadra vivenciada pelos países latino-americanos.

Destacam-se os casos de Brasil e Colômbia, embora não seja de somenos o que se passou em Honduras e Paraguai, no âmbito de suas institucionalidades. Também são significativos os fatos ocorridos na Argentina, Peru e Venezuela.

Cuba é caso à parte, mas que também vivencia um novo Código do Trabalho e um delicado e firme processo de reforma de suas bases econômicas, ambos dignos de estudos.

No que tange à Colômbia, por uma margem de diferença de menos de meio por cento entre os votantes do plebiscito, venceu a recusa ao acordo de paz proposto pelo governo e pelas FARC. A desalentada população não se apresentou às urnas. E, dentre os que exerceram o voto, formou-se apertada maioria contra a paz.

O interessante é que mesmo os vencedores não se jactaram da vitória e dividiram-se quanto ao que se pode prospectar em relação ao futuro.[1] Trata-se de um episódio que bem traduz a apatia generalizada de nossos tempos, na América Latina.

No Brasil, aqui tomado como um país do qual se podem extrair fragmentos do que se passa em toda a região, depois do golpe parlamentar que desprezou mais de cinquenta e quatro milhões de votos populares, a “austeridade” nos é apresentada como único caminho. Em menos de um mês de (des)governo, já estão traçados os pilares da nova e indigesta gestão.

Em vez do brado “independência ou morte”, que notabilizou D. Pedro I (D. Pedro IV em Portugal) quando do movimento de independência do Brasil em relação a Portugal, o governo atual nos induz a crer que, mercê de nossa inexorável dependência do capital, o dualismo da escolha está entre o suicídio ou morte.

E, assim, a política da austeridade orçamentária (ou o austericídio social) foi levantada como primeira haste sobre a qual se assenta o governo.

Sucede que a austeridade proposta é permeável apenas para o conjunto de direitos e ações sociais garantidos e mantidos pelo Estado. Não alcança negócios financeiros, as taxas dos juros, sustentados em níveis estratosféricos (14,25% ao ano, até meados de outubro de 2016, quando se escreve este editorial) e que somente se mantêm em tais patamares em terra brasilis.

Também a “austeridade” é de tamanha contradição que não alcança a excepcional participação do Brasil em proporcionar lastro à saúde financeira do Fundo Monetário Internacional, em favor de quem o Presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, proveniente do Banco Itaú S.A., subscreveu acordo mediante o qual se compromete a transferir até US$ 10 bilhões àquele Fundo.[2]

Se em matéria de austeridade estamos no fundo, tendo sido este o primeiro pilar escolhido para o governo de turno tentar angariar credibilidade, um segundo pilar de mudanças está a cargo do Poder Legislativo, cuja troca de comando também se deu com a defenestração do político Eduardo Cunha, que foi peça essencial na deflagração do procedimento de afastamento da Presidente eleita. O escolhido foi de um parlamentar conservador, convertido de oposição em governo.

Com o propósito de viabilizar um governo impopular pelo apoio das castas políticas e econômicas, abandonada a coalizão com os Partidos de representação da classe trabalhadora, a Presidência do Legislativo passou a ser titularizada por um partido que se aliou aos vencidos na eleição anterior, convertido em maioria no Congresso em virtude de um movimento de ampla adesão de inúmeras legendas ao intento de depor a Presidenta Dilma Vana Roussef.

O vice-presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia assumiu a Presidência da República e instaurou um ambiente e fluxo e refluxo de propostas na área social. Demonstrando que já havia um forte movimento de preparo de uma nova ambiência política, o governo não eleito inaugura a sua ação exumando diversos projetos de lei e propondo modificações constitucionais que já estavam dormitando nos escaninhos do nosso Legislativo.

Propugna-se pelo ensino público “desprovido de ideologias”[3]. Congelam-se os investimentos sociais por vinte anos[4].

Anunciou-se com alarde que a legislação de previdência social e trabalhista haveria de sofrer profundas transformações, sempre em nome da “competitividade” internacional e “para reduzir o desemprego”.

A velocidade com que se pôs o Congresso Nacional para assegurar a aprovação de um enorme conjunto de medidas foi impressionante.

Estamos à espera de votação, pelo Senado, de maior permissividade em relação à terceirização[5]. Há projeto que permite o trabalho intermitente, por dia ou por hora[6]. Há tentativa de modificação da Constituição Federal para permitir a redução da idade considerada limite inicial da atividade laboral para 14 anos[7]. Há propostas impeditivas do direito de propor ação perante a Justiça do Trabalho[8].

A prevalência do negociado sobre o legislado, tanto no âmbito coletivo quanto no âmbito individual, é tema que tem sido recorrentemente trazido à baila como uma proposta do governo. Tenta-se instituir a possibilidade de negociação individual direta entre empregado e empregador, inclusive in pejus ao empregado[9]. E, no âmbito coletivo, pretende-se atribuir valor absoluto às negociações[10].

Existe inclusive proposta de alijamento das entidades sindicais do processo de diálogo[11]. Pende também de apreciação proposta de redução da jornada de trabalho com redução de salários[12]. Pretende-se também criar outras categorias de trabalhadores, com menor massa de direitos[13]. Jornadas flexíveis de trabalho e permissão de contratos de curta duração também são ideias recorrentes[14]. Há intentos de ampliar a jornada do trabalho rural, a fim de assegurar doze horas diárias de trabalho[15].

Não poderiam deixar de constar da relação de propostas aquelas tendentes à supressão do direito de greve[16].

Nesses exemplos pinçados, restringimo-nos aos que há de mais significativo, pois há extenso rol de propostas avassaladoras dos direitos sociais.

Poderíamos até mesmo lembrar de propostas de supressão de todas as empresas públicas, que seriam privatizadas[17].

Mas há um terceiro pilar a sustentar o movimento de supressão de direitos trabalhistas conquistados ao longo da história brasileira e de modificações das políticas sociais que foram impressas no período recente entre 2003 e 2014, nos governos Lula e Dilma (PT).

Esse papel incumbiu à cúpula do Poder Judiciário, cuja organização parece apresentar uma espécie de colapso. A Suprema Corte brasileira vem, reiteradamente, nos últimos tempos, voltando-se à jurisdição da matéria trabalhista.

Em alguns casos avança sobre a jurisprudência construída pelo Tribunal Superior do Trabalho, fruto do processo de longa decantação de debates gestados pela agitação da doutrina e da jurisprudência trabalhistas.

Cito aqui alerta que nos dá o eminente Professor Jorge Luiz Souto Maior:

…”importante que esclarecesse, já que também disse que “há limites que precisam ser observados no Estado democrático de direito e dos quais não se pode deliberadamente afastar para favorecer grupo específico”, se o ato do STF de chegar sistematicamente a interpretações contrárias aos interesses dos trabalhadores, conforme verificado nos dois processos acima e nos processos: ADI 3934 (05/09); ADC 16 (11/10); RE 586.453 (02/13); RE 583.050 (02/13); RE 589.998 (03/13); ARE 709.212 (13/11/14); RE AI 664.335 (9/12/14); ADI 5209 (23/12/14); ADI 1923 (15/04/15); RE 590.415 (30/04/15); RE 895.759 (8/09/16); e ADI 4842 (14/0916); sendo que se já deu indicações de que poderá seguir o mesmo direcionamento nos processos: ADI 1625; RE 658.312 e RE 693.456; deixando antever, ainda, que o mesmo pode advir nos processos: (ARE 647.561 – dispensas coletivas); (AI 853.275/RJ – direito de greve); (ARE 713.211 – ampliação da terceirização), não seria, exatamente, um favorecimento de um grupo especifico da sociedade, qual seja, o setor econômico? [18]

O quadro institucional é de tal gravidade que um dos membros da Suprema Corte, Ministro Gilmar Ferreira Mendes, chega dizer que ”não cabe ao Tribunal Superior do Trabalho agir excepcionalmente e, para chegar a determinado objetivo, interpretar norma constitucional de forma arbitrária”. Além disso, Mendes diz em parte da decisão que suspende os efeitos de uma Súmula do Tribunal Superior do Trabalho, já que o entendimento do TST de manter válidos acordos já vencidos é “proeza digna de figurar no livro do Guinness, tamanho o grau de ineditismo da decisão que a Justiça Trabalhista pretendeu criar”.

Essa entonação não condiz com o diálogo institucional travado ao longo dos anos. Representa uma clara fonte de tensão institucional decorrente dos propósitos que permeiam a defesa das respectivas posições.

O que sucede, no entanto, é que, para chegar a determinado objetivo, o Supremo Tribunal Federal tem se dedicado como nunca à seara trabalhista. E tal atenção só se voltou de modo tão concentrado depois da destituição do governo eleito.

Antes mesmo que o Congresso Nacional deliberasse sobre determinadas propostas legislativas, como a que versa sobre a prevalência do negociado sobre o legislado, o Supremo Tribunal Federal tem se adiantado e se prestado, assim, ao papel de corte revisora da interpretação que tem sido emprestada às normas infraconstitucionais e constitucionais pelo Tribunal Superior do Trabalho.

A convicção de que o trabalho é um meio para que os seres humanos transformem o mundo e a si mesmos, mediante a produção individual e coletiva, reconhecimento que a própria Organização das Nações Unidas promove[19], suscita o desejo compartilhado pela Comunidade Internacional de que todos possam dispor dos bens produzidos socialmente, organizem estruturas básicas para conviver, aprendam uns com os outros e estabeleçam vínculos de solidariedade, contribuindo ao bem estar comum e a autorrealização pela criação de uma identidade individual e coletiva.

O caso brasileiro demonstra às escâncaras que estamos num momento de perigoso refluxo da evolução do reconhecimento normativo e social do direito humano ao trabalho e a seus frutos, colocando-nos mais uma vez sob o risco de que o trabalho se considere tão somente como mercadoria à disposição do mercado, com subsunção às leis de mercado, vulnerando o direito às pessoas de viver com dignidade.

O reforço do direito ao trabalho, da liberdade de trabalhar, o Direito do Trabalho deve reinventar-se, assumindo papel central no âmbito dos direitos humanos, o que inclui o restabelecimento e o estabelecimento de novos deveres positivos de quem toma o trabalho e seus correlativos direitos de quem trabalha.

O exemplo brasileiro apenas revela que a América Latina é uma região, em que o Direito Social reclama uma forte atuação dos estudiosos, pesquisadores, que, comprometidos com a manutenção e evolução do papel social cumprido pelo Direito do Trabalho, bem podem contribuir para a formação de um sereno e assentado entendimento no sentido de defesa dos direitos da classe trabalhadora, papel que nossa Revista de Direito Social Latino América busca cumprir, de modo franco e destemido.

Luís Carlos Moro

Membro do Conselho de Redação


[1]  http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/10/1820514-apos-vencer-plebiscito-na-colombia-campanha-do-nao-enfrenta-racha.shtml

[2]  http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-fecha-acordo-para-emprestar-dinheiro-ao-fmi,10000081443

[3]  O Projeto de Lei 867/2015, conhecido como “Programa Escola Sem Partido”, pretende incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional a conversão de professores de educadores a instrutores, que devem cingir-se a transmitir a “matéria objeto da disciplina” sem discutir valores e a realidade que permeiam a vida do próprio aluno e da sociedade em que se insere.

[4]  A Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, de iniciativa do chefe do Poder Executivo, já aprovada em primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados, impede a disputa alocativa por recursos públicos em áreas sociais, congelando o orçamento da União, institui o “Novo Regime Fiscal”. A PEC retira recursos da saúde e da educação por impor limites de gastos governamentais pelos próximos vinte anos.

[5]  Trata-se do Projeto de Lei da Câmara 30/2015, que, a pretexto de regulamentar a terceirização, permite a precarização das relações de trabalho.

[6]  É o Projeto de Lei 3.785/2012, que tramita na Câmara dos Deputados em fase conclusiva por suas Comissões.

[7]  É a Proposta de Emenda Constitucional 18/2011, que pende de apreciação na Câmara dos Deputados.

[8]  Duas propostas tramitam nesse sentido: O Projeto de Lei 948/2011 e o Projeto de Lei 7.549/2014, ambos na Câmara dos Deputados.

[9]  Vide o Projeto de Lei 427/2015, na Câmara dos Deputados.

[10]  De examinar o Projeto de Lei 4.193/2012, da Câmara dos Deputados. No mesmo sentido, mas permitindo às convenções coletivas modificar instruções normativas expedidas pelo Ministério do Trabalho, é o Projeto de Lei 7341/2014, da Câmara.

[11]  É o caso do Projeto de Lei 8.294/2014, que se diz proponente de “livre estipulação das relações contratuais de trabalho”.

[12]  Projeto de Lei 5019/2009, da Câmara.

[13]  Nesse sentido, o chamado “Simples Trabalhista” proposto pelo Projeto de Lei 450/2015, da Câmara dos Deputados.

[14]  Os Projetos de Lei 2820/2015 e 726/2015, além do 3.342/2015, todos trazem prescrições nessa direção.

[15]  O Projeto de Lei do Senado 208/2012 vem com essa proposta, assim como o PLS 627/2015.

[16]  O PLS 710/2011, o PLS 327/2014 e o PL 4497/2001, da Câmara, todos são nesse sentido.

[17]  Convida-se à impressionante leitura do PLS 555/2015, que busca privatizar todo o patrimônio público da União.

[18]  http://www.jorgesoutomaior.com/blog/o-golpe-a-galope-no-stf#_edn1.

[19]  Vide Informe anual do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e informes da Oficial do Alto Comissariado do Secretário Geral, A/HRC/32/32, sobre efetividade do direito ao Trabalho.